Como a insatisfação popular com uma cerveja ruim fez surgir a Pilsen, o estilo mais consumido no planeta. Leve, transparente e refrescante, a Pilsen conquistou o mundo há quase dois séculos.
Você está sedento, pega uma garrafa de cerveja, serve uma taça até a boca, sorve o primeiro gole e... blergh. Ela é ruim, mal feita, talvez até esteja estragada. Você a jogaria fora, não? Agora imagine se forem 36 barris repletos de uma bebida imprestável. Seria motivo para um levante popular. Pois foi justamente o que aconteceu há 180 anos, em uma pequena cidade chamada Pilsen, na região da Boêmia, onde atualmente fica a República Tcheca. Dessa revolta contra uma bebida de má qualidade surgiu um líquido precioso, de coloração dourada e sabor inédito, que ganharia fama mundo afora e se tornaria o estilo de cerveja mais consumido no planeta. Nasceu assim, há quase dois séculos, a Pilsen, que responde hoje por 98% do mercado brasileiro.
Cerveja era coisa séria naquelas terras europeias. Havia até mesmo um santo cervejeiro, São Venceslau, instituído pelo Rei Carlos IV em 1357, dois anos após ser coroado imperador do Sacro Império Romano Germânico. O nome do santo era uma homenagem ao patriarca do antigo monarca Venceslau II, que em 1295 havia fundado a cidade de Pilsen e concedido a 26 burgueses o direito de fabricar e vender sua própria cerveja.
A bebida não era lá essas coisas, mas ninguém reclamava muito – afinal estávamos na Idade Média e havia sempre uma guilhotina na praça para lembrar que os monarcas não costumavam tolerar insatisfações plebeias. Os séculos se passaram até que num certo dia de 1836 não deu mais para aguentar. A cerveja era muito ruim, provavelmente pela falta de higiene ou alguma contaminação durante o processo de produção. O fato é que a bebida era intragável, e os habitantes de Pilsen reagiram esvaziando 36 barris em plena praça municipal. Algo precisava ser feito.
- A cerveja naquela época era muito escura, os maltes eram torrados a mão e deixava a bebida com um gosto defumado – conta o beer sommelier Herbert Schumacher, especialista na escola alemã de cervejas.
Como reza a cartilha cervejeira da boa vizinhança, os produtores locais decidiram unir forças e construíram juntos uma fábrica. Não muito longe dali, na Baviera, produzia-se uma cerveja muito melhor, não de alta fermentação, como as de Pilsen, mas de baixa fermentação, gostosa e turbinada, cuja fama percorria toda a região.
Mestre-cervejeiro foi “importado”
A solução foi importar um mestre-cervejeiro alemão. Josef Groll chegou à cidade cercado de suspeitas e expectativas de igual proporção. Valendo-se dos seus conhecimentos técnicos e de uma primorosa matéria-prima local, reinventou a cerveja e estabeleceu parâmetros seguidos até hoje. Groll aproveitou a água suave de Pilsen, o lúpulo Saaz que crescia nas redondezas e os subterrâneos da cidade para fermentar a bebida a baixas temperaturas.
A primeira cozedura aconteceu em 5 de outubro de 1842. O líquido tinha cor de ouro. A espuma, parecia neve. Era uma cerveja clara, leve. O sabor, refrescante. E o aroma, intenso. Para completar a conjugação astral, na mesma época surgiam os copos de cristal da Boêmia. Até então, cerveja era tomada em canecas de louça ou estanho, por vezes até de couro. A nova invenção permitiu à população local vislumbrar a bebida pelo vidro diáfano, sorvendo com os olhos aquele néctar dos deuses.
A nova receita ganhou o nome da cidade, Pilsen, e foi imitada mundo afora. Anos depois, a cervejaria onde Groll manejou aquelas panelas milagrosas foi rebatizada de Pilsner Urquell, cujo nome significa “cerveja original de Pilsen”.
Ainda hoje, a fábrica mantém a fórmula original e suas dependências se tornaram ponto turístico, destino de peregrinação de cervejeiros de todos os cantos do planeta. E desde aquele 5 de outubro de 1842 nunca mais se teve notícia de alguém jogando ao chão um copo que seja da cerveja local por reclamar do seu gosto.
- A criação da Pilsen foi uma revolução no mundo cervejeiro europeu. Todo mundo ficou encantado. O consumo se popularizou demais, porque como antes as cervejas escuras eram muito fortes, quase ninguém tomava mais do que um litro. Com o surgimento da Pilsen, se tomava três litros fácil. Eles exportaram muito, principalmente para a Alemanha. Daí os alemães acabaram se inspirando na receita tcheca e passaram a fabricar suas próprias Pilsen – afirma Schumacher.
Com a proliferação do estilo na Alemanha, a Pilsen dominou o maior enclave cervejeiro. A partir daí, rebelião popular mesmo só se for por mais um caneco transbordante da cerveja que consumou uma conquista territorial jamais sonhada pelos antigos vikings que habitavam aquela região.
Fonte: Globo.com
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